Saúde e segurança do trabalho durante a pandemia da covid-19: Atestados, exames médicos, intimidade do(a) empregado(a) e testagem em massa

Por força dos artigos 220, inciso VIII e 225, ambos da Constituição Federal, o meio ambiente é um direito fundamental e, dentro deste, encontra-se o meio ambiente do trabalho. De acordo com as lições de Ney Maranhão1, é restrito o pensamento de crer que o meio ambiente de trabalho é somente o preciso local da prestação de serviços, devendo ser observada a natureza tríplice na composição dos fatores de risco, qual seja, condições de trabalho, organização e relações interpessoais. Ademais, é dever da empresa a redução de riscos inerentes ao trabalho, conforme preceitua o artigo 7º, inciso XXII, da CF/88.

A partir desse panorama é que se mostra relevante a análise das novas facetas que apresentam as questões de saúde e segurança do trabalho em tempos de pandemia da Covid-19 no Brasil.

No que tange ao atestado médico, recomenda o Ministério Público do Trabalho, em atenção ao princípio constitucional da função social da empresa, que os empregadores, em geral, devem aceitar a autodeclaração do(a) empregado(a) sobre o seu estado de saúde, relativamente à presença de sintomas da Covid-19, promovendo o afastamento do local de trabalho, como medida de prevenção da saúde pública, sem prejuízo do abono dos dias de faltas.

Ainda que se levante a hipótese de eventual má-fé por parte do(a) empregado(a), o próprio MPT ressalta, na Recomendação Nº 1 – PGT/GT COVID-19, que a declaração falsa, além de configurar, em tese, os crimes previstos nos arts. 171 (estelionato) e 299 do Código Penal (falsidade ideológica), poderá sujeitar o(a) empregado(a) às sanções decorrentes do exercício do poder diretivo patronal, quais sejam, advertência, suspensão e/ou dispensa por justa causa.

Não vamos adentrar na questão previdenciária, pois, para a finalidade de afastamento superior a 14 dias, ou seja, nas hipóteses mais graves da contaminação e complicações causadas pela Covid-19, alguns documentos formais são exigidos. Objetiva o presente artigo, em realidade, tratar das questões mais corriqueiras que, felizmente, são os casos leves e moderados da doença, os quais não costumam se prolongar por grande espaço de tempo.

No plano nacional, a Portaria Conjunta 20/2020 do Ministério da Economia/Secretaria Especial de Previdência e Trabalho indica que a quarentena do(a) empregado(a) que contraiu a Covid-19, mas não apresentou sintomas graves, deve ser de 14 dias. O item 5 do Protocolo publicado em 29/06, pelo Governo de São Paulo sobre o assunto, orienta as empresas nos seguintes moldes: se o funcionário estiver sintomático, permanecer em isolamento domiciliar por 14 dias. Após o isolamento, e com pelo menos 3 dias sem sintomas, o funcionário poderá voltar ao trabalho.

As normas atinentes à Covid-19 não mencionam obrigatoriedade de realização de exame médico quando do retorno do afastamento acima indicado. É possível conjugarmos dois fatores para conclusão no sentido de que não há obrigatoriedade legal: o primeiro deles é que o nosso ordenamento jurídico, de maneira geral, estabelece que tal providência deva ser tomada apenas nos casos em que o(a) empregado(a) permanecer ausente por período igual ou superior a 30 dias, em razão de doença de natureza ocupacional ou não; o segundo motivo, mais significativo para a análise, reside no fato de que a OMS e diversas outras autoridades médicas já se posicionaram quanto à improvável transmissibilidade do vírus depois de decorridos os 14 dias dos primeiros sintomas.

No que se refere ao exame periódico imposto pelo artigo 168 da CLT, em regra, ele é realizado bienalmente, no caso de empregados(as) que estejam na faixa etária entre 18 a 45 anos. Todavia, não há impedimento para que seja efetivado em prazo inferior, principalmente se considerarmos o contexto de uma pandemia, com vistas a garantir à saúde dos(as) empregados(as) e da própria sociedade civil.

O parágrafo 2º do art. 168 da CLT autoriza, ainda, ao empregador, a realização de exames complementares, a critério médico. O resultado deverá ser comunicado ao(à) trabalhador(a). Importante mencionar que o Código de Ética Médica veda a revelação de fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.

Destarte, quando a doença que o(a) paciente possui representa acentuado risco à comunidade, como é o caso da Covid-19, o fato poderá ser divulgado a terceiros, pois prevalece o interesse público e o direito à saúde pública em detrimento da intimidade/privacidade do(a) paciente. Nesse sentido, sobre a questão do sigilo no âmbito privado das empresas em relação à Covid-19, já foi proferida decisão em sede de Mandado de Segurança (Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região / proc. nº 00214913220205040000) autorizando a divulgação do nome da pessoa infectada, desde que com a devida autorização individual e expressa, a fim de que possam ser estabelecidas medidas de proteção às demais pessoas que possivelmente tenham mantido algum tipo de contato direto ou indireto com o(a) infectado(a).

Quanto à exteriorização de recusa pelo(a) empregado(a) acerca da divulgação, sob o ponto de vista do direito constitucional do trabalho, entendemos que a oposição deva ser respeitada, pois atrelada ao direito fundamental da intimidade e, ainda, da proteção dos dados pessoais (lembremos que a rigorosa Lei Geral de Proteção de Dados entrará em vigor no próximo ano), isto desde que seja possível à empresa tomar as medidas de prevenção ao contágio e transmissão sem a necessária exposição da imagem do(a) empregado(a).

Vale mencionar o art. 6º da lei 13.979/2020, que versa sobre o “enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019“, e dispõe que:

Art. 6º É obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação.

§ 1º A obrigação a que se refere o caput deste artigo estende-se às pessoas jurídicas de direito privado quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária.

O fato é que, na prática, o anonimato certamente ficará bastante fragilizado em razão do obrigatório afastamento da pessoa do local de trabalho e de suas atividades.

Dando continuidade às previsões trabalhistas de exames médicos, a Norma Regulamentadora 7 (NR-7) prevê expressamente que o PCMSO deverá considerar as questões incidentes sobre o indivíduo e a coletividade da classe trabalhadora, privilegiando o instrumental clínico-epidemiológico na abordagem da relação entre sua saúde e o trabalho. Isso significa que o(a) médico(a) deve aplicar um “olhar coletivo”2 nas questões relacionadas à segurança e a saúde dos(as) trabalhadores(as), com valorização do controle social, ponto este que se mostra relevante durante a pandemia, até mesmo para fins de estatísticas e contenção da doença.

Contribui com essa linha argumentativa o fato de que o MPT já assinalou, com base nas diretrizes divulgadas pelo Ministério da Saúde, que diante da falta de testes de detecção do coronavírus, a verificação da evolução da pandemia será feita pelo método da investigação epidemiológica, e, como é óbvio, a investigação epidemiológica, é realizada a partir de casos notificados (clinicamente declarados ou suspeitos) e seus contatos, com vistas a identificar a fonte de infecção e o modo de transmissão, os grupos expostos a maior risco e os fatores de risco, bem como confirmar o diagnóstico e determinar as principais características epidemiológicas.

Ainda acerca da NR-7, esta estabelece que compete ao empregador custear, sem ônus para o(a) empregado(a), todos os procedimentos relacionados ao PCMSO (item 7.3.1.b). No mesmo sentido é a Convenção 155 da OIT, ratificada pelo Brasil: “Art. 21 — As medidas de segurança e higiene do trabalho não deverão implicar nenhum ônus financeiro para os trabalhadores“.

Surge, assim, a questão da testagem dos empregados e empregadas do âmbito privado. Em julgamento recente, o Tribunal Superior do Trabalho derrubou uma liminar que obrigava instituições bancárias a realizarem testes para a Covid-19 em todo o seu quadro de empregados(as). O Ministro Aloysio Corrêa da Veiga destacou questões afetas à disponibilidade e dificuldade na realização dos ditos exames.

Em seguida, a Portaria Conjunta 20/2020, já mencionada no presente artigo, definiu que “não deve ser exigida testagem laboratorial para a Covid-19 de todos os trabalhadores como condição para retomada das atividades do setor ou do estabelecimento por não haver, até o momento, recomendação técnica para esse procedimento“.

Vimos, assim, que não há obrigatoriedade de testagem em massa no âmbito corporativo. De qualquer forma, igualmente não há vedação para que as empresas disponibilizem testes aos seus empregados e empregadas, desde que pautados pelos princípios constitucionais da preservação da saúde e da precaução e redução dos riscos (na incerteza de o evento lesivo ocorrer, devem ser privilegiadas as medidas para que eles não ocorram), sem qualquer discriminação e, especialmente, tomando o cuidado de colher a autorização individual de cada pessoa, em conformidade com os limites constitucionais à intimidade já discutidos nesse artigo.

No entanto, pensamos que, se a empresa possui a capacidade financeira, o ideal seria a realização dos testes, mantendo os(as) trabalhadores(as) protegidos(as) e informados(as), considerando, ainda que os(as) empregados(as) podem levar o vírus para suas residências, transmitindo para pessoas do convício familiar ou comunitário, que muitas vezes se enquadram em algum grupo de risco. Importa, assim, a responsabilidade social da empresa, que tem a assunção dos riscos decorrentes da própria atividade produtiva e deve assegurar um meio ambiente de trabalho saudável.

A Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil – e que, portanto, assume caráter vinculante –, prevê em seu art. 16 que deverá ser exigida dos empregadores, na medida do que for razoável e possível, a garantia de que os locais de trabalho não envolvam risco algum para a segurança e a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras. Referida Convenção, ao conceituar o termo saúde em relação ao trabalho, não se limitou apenas à ausência de doenças, no sentido estrito, mas também aos elementos físicos e mentais que permeiam o assunto segurança e higiene no labor. A alínea “f)” do mesmo diploma internacional sugere ao(à) trabalhador(a) que informe imediatamente o seu superior hierárquico direto sobre qualquer situação de trabalho que, a seu ver e por motivos razoáveis, envolva um perigo iminente e grave para sua vida ou sua saúde, sendo que, enquanto o empregador não tiver tomado medidas corretivas, se forem necessárias, não poderá exigir dos trabalhadores a sua volta a uma situação de trabalho onde exista, em caráter contínuo, um perigo grave ou iminente para sua vida ou sua saúde.

Por fim, frisamos que o plenário do STF, em sessão realizada por videoconferência no dia 29 de abril, já sinalizou que a Covid-19 poderá ser caracterizada acidente de trabalho, com todos os efeitos trabalhistas e previdenciários daí decorrentes. Essa caracterização dependerá, evidentemente, das circunstâncias do caso concreto, já que a legislação prevê que as doenças endêmicas dependem de alguns requisitos, como o nexo causal. Mas é também pela análise caso a caso que a Justiça balizará suas decisões sobre a responsabilidade das empresas, em observância aos procedimentos que foram adotados na preservação da saúde do seu quadro de empregados(as) e respectivos efeitos de contenção do vírus perante a sociedade civil em geral.

Fonte: Migalhas.

Publicado em 04 de setembro de 2020, sexta-feira.